Renato Ferreira
Professor do ensino básico e secundário. Poeta e fotógrafo amador nos tempos livres. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela FLUP e Pós-graduado em Supervisão pedagógica e formação de formadores.As obras do escritor britânico Roald Dahl estão a ser alvo de uma revisão editorial, da parte da Puffin Books, na Inglaterra, de forma a substituir palavras consideradas “ofensivas” como «gordo», «doido» ou «feio».
Não é a primeira vez que nas ilhas anglo-saxónicas se tenta levar o politicamente correcto ao extremo de privar o grande público de toda a variedade e riqueza da linguagem que não se pode limitar ao nível denotativo. É toda uma profundidade de conotações, de sentidos figurados, de ironias e insinuações que constituem a riqueza da literatura e do pensamento intelectual e artístico que é, assim, colocada em cheque. Com a consequente perda de capacidade de compreensão e intervenção no real. A juventude, público privilegiado das obras em discussão, precisa de ser capaz de fazer uma leitura da realidade mais profunda do que apenas a superficial do mundo cor-de-rosa, numa linguagem cor-de-rosa, impotente para interpretar e agir sobre o mundo.
Em síntese, é um problema linguístico e social, civilizacional, até. Sem esquecer que a escrita, como qualquer outra obra de arte, é filha da época em que foi concebida e não pode, nem deve, ser forçada a vestir-se com as roupagens da época em que é consumida. Há meses, vi as imagens de rostos femininos em montras e publicidades nas ruas de Cabul pintadas por cima de forma a “burkar” (perdoem-me o neologismo) a imagem da mulher. É uma analogia forte? Talvez, mas o fundamento é o mesmo: privar os outros daquilo que alguém acha ser melhor ocultar; e o resultado também: deixa-se ver apenas o que é permitido por quem decide. E entramos no domínio da ética.
A História está cheia de exemplos mais ou menos virulentos de destruição do que não cabe na norma. Através da espada, do fogo, do esquecimento forçado… E, se há coisa que a História nos deve ensinar, é precisamente o facto de que ela não deve ser reescrita, nem lida com os olhos de hoje. Também se aprende com os erros e conhecê-los permite-nos evitá-los, no mínimo tentar evitá-los. O revisionismo ofusca a realidade, distorce o que somos, de onde viemos e, consequentemente, o tão importante para onde vamos.
Não há censuras boas, nem a sociedade deve tolerar umas enquanto castiga outras. Seja na literatura ou em qualquer outra forma de arte. Que um grupo, emanado da esfera política, religiosa ou económica, se considere dono desse poder de decidir o que os outros podem ver não se limita já ao enquadramento da censura, já assume o domínio da ditadura e do controlo do que se lê, se vê, se ouve… se pensa. A História repete-se, diz-se, e cabe a cada um de nós tentar evitar que as próximas décadas repliquem o século XX. Apesar de tantos sinais em sentido contrário.
Renato Ferreira