Renato Ferreira
Professor do ensino básico e secundário. Poeta e fotógrafo amador nos tempos livres. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela FLUP e Pós-graduado em Supervisão pedagógica e formação de formadores.O confronto entre sinapses e a memória computacional, o livre-arbítrio e a delegação das tarefas cognitivas – a lei do menor esforço e o esvaziamento emocional. Quem levará a melhor?
O apoucamento da curiosidade e da memória, todavia, levam a uma menor quantidade de sinapses, de relações mentais que irão ter como consequência uma menor capacidade de distinção do certo e do errado, uma dissipação do livre-arbítrio, mesmo se de forma inconsciente. Deixar que outro, neste caso a máquina, nos mostre o caminho, nos sugira respostas, tendências ou formulações mentais levará ao condicionamento das emoções. Como se, na matemática, fossemos omitindo as equações e fórmulas, até ficarmos reduzidos às operações básicas de somar, subtrair, multiplicar e dividir. E sem as emoções vem a perda ao nível da consciência da realidade e a perda da nossa interacção com ela, das experiências que nos construíram, que nos fizeram e nos tornaram aquilo que somos. Experiências positivas e negativas. Comportamentos a evitar ou a repetir. Saber e não esquecer.
O cientista comportamental e psicólogo alemão, Gerd Gigerenzer, alerta para o perigo de estarmos a delegar a nossa capacidade de decisão quanto às músicas que ouvimos, aos filmes que vemos, à publicidade que se insinua aos nossos olhos, a um algoritmo. E o efeito a médio e longo prazo que pode ter na nossa saúde mental. Sabemos, ainda, intuir, deduzir, antecipar, conotar, imaginar, sentir, ou quedamo-nos sossegados e satisfeitos, quietinhos, deixamo-nos levar pelo nóvel canto da sereia, entregamo-nos de cérebro e coração à mais recente maravilha do mundo moderno, a biblioteca colectiva, capaz de estabelecer relações lógicas entre perguntas e constatações, o papagaio dotado de uma memória prodigiosa.
Somos nós memória de cem, duzentas, quinhentas mil combinações de frases, incapazes da mais banal originalidade, condenados a repetirmo-nos? Ou, como defende o neurocientista português radicado nos Estados-Unidos, António Damásio, a nossa subjectidade criativa, as nossas emoções são o que nos confere a nossa humanidade. A relação entre o lado emocional e o cognitivo parece constituir a barreira intransponível que separa a ficção científica da possibilidade concreta da existência de uma máquina emocional. A este propósito, de entre muitas hipóteses, recomendo dois filmes: “Ex Machina”, de Alex Garland (o futuro é daqui a dez minutos, dizia ele a propósito do filme), de 2014, com a Alicia Vikander. Um enredo sobre a manipulação emocional exercido por uma máquina (obviamente de traços femininos) sobre um homem, servido de forma interessante; “Transcendence: A Nova Inteligência”, de Wally Pfister, curiosamente também de há nove anos, com Johnny Depp e Morgan Freeman, sobre a transferência de uma mente humana, a do cientista que lidera as investigações em IA para uma máquina. Tudo sob a égide da ficção, claro. Com doses abundantes de ficção.
Em vários momentos da história da humanidade se pensou ter atingido um tal desenvolvimento artístico, tecnológico e civilizacional, que se julgou ser difícil, ou mesmo impossível pregredir para novas descobertas, invenções, manifestações. Este poderá ser um desses períodos, no mínimo, um daqueles em que se julgam distantes alguns anseios e conquistas. Um daqueles que nos provará, ou aos nossos descendentes, que, mais uma vez, estávamos equivocados. Pelo menos muitos são os que pensam assim, que a máquina nunca será insuflada pela centelha de humanidade que é o sentimento. Voltando ao filme de Kubrick, para fechar o círculo, aquele computador provido de emoções, não conseguiu sobrepor-se ao humano que o enfrentou, tal como não conseguiu sair do domínio da ficção científica. Ainda…
Renato Ferreira