Início » Spin Maddie

Spin Maddie

por Vitor de Sousa
Vitor de Sousa - Vale do Sousa TV
Vitor de Sousa
Docente universitário e investigador. Gosta de fotografia, de ler, de ver futebol... Preza, acima de tudo, o ócio. O que lhe dá balanço para olhar e refletir sobre o mundo.

Maddie ainda vende. Já não terá o peso de um spin – que daria jeito ao atual Governo – mas ainda reboca muita gente. Ávida de saber o que se passou certo dia numa localidade algarvia. A propósito da criança desaparecida conto uma história. Eu e mais dois amigos – o Mário Gaspar e o Jorge Nunes – há 20 anos ou mais, tínhamos um blogue. Um dia, nas palavras-chave de um post “corriqueiro” escrevi “Maddie”. Aquilo que era, normalmente, visto pelos amigos e alguns arredores, disparou para as 26 mil visualizações.

Não foi spinning, na altura. Longe estava eu dessa dinâmica. Mas percebi tudo muito rapidamente. Mesmo que, então, exercesse funções de assessor de Imprensa.

Créditos: Gideon https://www.flickr.com/photos/malias/529639367

A ideia parecia-me simples: sempre que houvesse um assunto “fraturante”, dava-se destaque a outro para desviar o foco. É o spin. Como no movimento dos eletrões, para quem estudou Física. Conceito: O que é a corrente elétrica? Um fluxo de eletrões! Sim, porque só os eletrões se movem. As notícias como se fossem eletrões…

No caso dos destaques da atualidade, mesmo que pareçam lapas em cima de um dia, da semana e do mês, reordena-se rapidamente o mundo, de molde a spinar outra coisa. Ou, como diz o outro: carregando nas tintas de outra coisa para mudar o foco das atenções. E, como se sabe, quem olha para outro lado, esquece (ainda que temporariamente) o que interessa aos média. Mesmo que sejam os média a exercerem esse spin.

Como os média vivem de notícias – acontecimentos que subiram de nível por cumprirem critérios de noticiabilidade, o chamado “newsmaking” – tudo vive na bolha visível, decorrente da construção social da realidade, para caber num órgão de informação. No papel, temos os jornais e o seu número limitado de páginas; nos outros meios, o som e a imagem, sendo certo que a elasticidade dos meios não acontece por via dos meta-acontecimentos, apanágio da CMTV.

Mesmo que a exceção seja “o homem que morde o cão”, a imagem, ainda que seja difícil de visualizar, porque rara, abastardou-se. E, de súbito, há homens em cada esquina das ruas, a morder cães. O açaimo já não tem destinatário canino, mas voltou-se para o dono do bicho. Que alimenta jornalistas. Que são dos últimos elos da cadeia. Que têm que vender uma história miserável só porque têm que sobreviver e ganhar um ordenado ao fim do mês. Mesmo que exibam a carteira profissional e tenham subscrito o código deontológico. E, sabe-se que, se se recusarem a fazer o que lhes mandam as chefias (ventríloquas das administrações), podem sair sem voltarem, pois a fila de pretendentes a cinco minutos de fama dá a volta ao quarteirão.

E, depois, fala-se na crise do jornalismo. Claro! “Downsizing” (despedir) para enveredar pelo “outsourcing” (comprar fora). Sem encargos para a empresa (vínculo, impostos e segurança social); acabando a memória nas redações e o ethos da profissão (os mais velhos vão abandonando o barco e ficam os mais novos a fazer peças, muito na lógica “pés de microfone”, que serve na mesma. Servirá?).

A democracia está beliscada. Liberdade de imprensa? Sim, existe. Claro! A censura pré-abril já era. Mas há outras dinâmicas preocupantes. Que fazem pensar no que isto será daqui a poucos anos. E não me falem de jornalismo do cidadão. Então para que servem os jornalistas se não tiverem o que mediar?

Mas a crise é tão grave que, como indica um estudo com já alguns anos, a maior parte das notícias políticas, em Portugal, decorre de fontes profissionais. Bonito, certo? E o contraditório?

Quando escrevi spin Maddie, não estava tontinho. Pensava nisto. Na palha que, todos os dias, os média (mérdia, diria um conhecido meu…) dão ao burro., que é como quem diz, “todo o burro come palha, é preciso é saber dar-lha”.

Só que não. Quando, aos quatro ventos, falamos em cidadania como um direito humano fundamental, temos que mudar, uma vez mais, o foco. E, em vez de spinnarmos a coisa, comme d´habitude, devemos desconstrui-la e perceber como funciona. Que a sociedade não é reificada e não há carimbos. Muito menos identitários e de género. E que temos que pensar e fazê-lo à António Gedeão, que sublinhava não existir “machado que corte a raiz ao pensamento”. Não há superegos operacionais impeditivos de desenvolver uma ideia. Mas, na prática, pode acontecer como tipifica, Elisabeth Noelle-Neumann, na sua Teoria da Espiral do Silêncio: os indivíduos omitem a sua própria opinião quando ela pode conflituar com a opinião dominante, por temerem um eventual isolamento e serem relegados para uma minoria dentro do grupo.

Rebelarmo-nos contra isto? Ser herege “moderno” como conta, Byung-Chul Han. Aquele que vira costas à realidade e a ignora. Uma utopia para fazer face a esta dinâmica circense, que bate forte na tecla do ilusionismo.

Não podendo mostrar tudo o que acontece no mundo, devido à existência de regras de produção inerentes ao jornalismo, os média dão conta de uma porção construída da realidade. O compromisso, apesar de ser com a verdade, vê-se beliscado a par e passo por fenómenos que vão em sentido contrário, aproveitando a técnica usada pelo próprio jornalismo para passar mensagens que se configuram como “verdades convenientes”.  O que nos leva às fake news, que são notícias falsas publicadas pelos média como se fossem informações reais.

Mas que, como fixou o Umberto Eco, em várias entrevistas antes de morrer, as mentiras são mais fascinantes do que as verdades: o que torna os signos interessantes não é servirem para dizer a verdade, mas poderem ser usados para mentir ou falar de coisas que nunca vimos: “Na minha coleção não vai encontrar Galileu, mas sim Ptolomeu, porque estava errado” (entrevista a Luciana Leiderfarb, Expresso, 2015).

Saramago, na mesma altura, afiançava que o tempo das verdades plurais tinha acabado., observando que vivemos no tempo da mentira universal, em que nunca se mentiu tanto. Pelo que “vivemos na mentira, todos os dias”. George Steiner discorreu sobre o dom que os seres humanos têm de falsificar a informação, que reveste todas as formas possíveis, da mentira descarada ao silêncio.. Já no final dos anos 60 do século XX, Hannah Arendt sublinhava a crescente importância do que dizia ser a “mentira organizada” no espaço público moderno. 

Como combater, então, isto? Trata-se de uma tarefa difícil. Quando uma ideia é assimilada como verdadeira, é muito difícil livramo-nos dela. Mesmo sendo falsa.  Investir na Educação para os Média pode ser um caminho, a que o Sindicato dos Jorbnalistas já aderiu.

A digitalização da informação veio agravar problemas existentes nos média, acelerando-os.

Simultaneidade terá sido responsável por um novo regime de historicidade, uma espécie de presente contínuo, caracterizado pela aceleração, e em que o presente e o passado se dão a mostrar de forma disruptiva (François Hartog, 2003).

Mas teremos sempre a diversidade? Mas que diversidade? Ao contrário do que afirmam os entusiastas das novas possibilidades técnicas dos media digitais, a atenção concentra-se num número muito limitada de fontes que são ainda dominadas pelos media tradicionais.

Ainda por cima, seguindo o trilho de Eco, olhamos para Nietzsche, que, por sua vez, olhava para a verdade como um ponto de vista, encarando-a como uma ficção. Ele não definia a nem aceitava uma definição de verdade, porque não se pode alcançar uma certeza sobre a definição do oposto da mentira, como assinala Sérgio Campos Gonçalves (2011). Daí o texto do filósofo intitulado “Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo” (1888) 

Num tempo de engano universal, dizer a verdade é, pois,  um ato revolucionário. Como confidenciou George Orwell. Ele escreveu estas palavras já na década de 1940, quando publicava a primeira edição do livro 1984…

O que, como defende Arjan Appadurai (2017), evidencia que a questão central dos nossos dias “é se estaremos a assistir à rejeição mundial da democracia liberal e à sua substituição por algum tipo de autoritarismo populista”. Por isso, Daniel Innerarity (2019), é de opinião de que se não houver medidas tendentes a inverter este statu quo, a situação pode degradar-se para níveis de difícil recuperação. Mesmo que a indignação, quando exercida pelos cidadãos, continue a contribuir para resolver conflitos e problemas.

Remato com uma quase-teoria do António Pinho Vargas (2015). Que vale o que vale, mas que explica (ou pode explicar) muita coisa. Chamou-lhe “As estufas imunológicas”: Tal como os políticos, os jornalistas vivem em “estufas imunológicas” que os afastam da realidade e é lá que travam debates de uns para os outros no interior da estufa. Dos únicos contactos com a realidade, o político tem o motorista…

Na democracia, os sistemas mediáticos deviam desafiar as estruturas sociais de poder. Na prática, reforçam-nas.

Também poderá gostar de

Escrever um comentário