Renato Ferreira
Professor do ensino básico e secundário. Poeta e fotógrafo amador nos tempos livres. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela FLUP e Pós-graduado em Supervisão pedagógica e formação de formadores.Ou de como vamos sendo suavemente enganados pelas aparências e pela banalização do que não devia ser tolerado.
Primeira crónica do ano. De que falar? Dos exageros do consumismo das festividades? Das promessas inabaláveis do querer férreo que nos vão fazer emagrecer, deixar de fumar, praticar mais exercício físico, comer de forma mais saudável? A sério? São mesmo estes os temas em voga? Pois não, caro leitor. Claro que não! Isso é na crónica ao lado…
O que desta vez proponho são alguns exemplos do jogo de aparências a que somos expostos quotidianamente.
Dakar, o rali. Sou do tempo em que esta prova de resistência começava em Paris, no dia do Ano Novo, e terminava em Dakar, no Senegal, depois de uma travessia do Sahara e de vários países do centro de África. Chamava-se rali Paris-Dakar. Em 2009, e até 2019, a prova deslocou-se para a América do Sul. A partir de 2020, a prova acontece, essencialmente, na Arábia Saudita. Em suma, da original só resta metade do nome. Nem a data nem o local têm a ver com o sonho de resistência motorizada nascido no final dos anos 70 do século passado.
As escolhas noticiosas. Num mundo cada vez mais ligado, com imensa informação à nossa disposição através de diversos meios, temos um jornalismo luso a encolher(-se), a seleccionar, ou a deixar que alguém seleccione por si, o que apresentar aos telespectadores, aos ouvintes, aos leitores. Quem não for curioso ou não tenha a possibilidade de aceder a outras fontes, não terá grande alternativa senão acreditar que o que lhe servem é o certo, o único. Parece que os jornalistas já não vão ao fim do mundo, nem sequer ao fim da rua, parafraseando Fernando Alves. E não é por acaso, em plena crise da TSF, JN, DN, etc. Poderá ser muito por responsabilidade da gestão, mas não só. Desta crise, para já, prevê-se que apenas os órgãos “regionais”, JN e O Jogo, terão carta de alforria. Imaginamos a que custo…
As produções da IA. Após o texto escrito, que primeiro atraiu a atenção para a inteligência artificial, temos vez da imagem fixa ou animada e da voz. O tempo de afirmar com convicção que, se há uma fotografia, ou um filme, é porque isso é verdade, acabou. As “artificialidades” são cada vez mais perfeitas, mais convincentes. O mesmo se passa com os registos audio, pôr a voz de alguém a afirmar algo que nunca foi dito está ao alcance, literalmente, de um clique. Hoje, tenho de procurar o detalhe, a anomalia possível para poder confirmar a autenticidade do que vejo ou do que ouço. É triste, mas tem de ser feito!
A escola. Ao sabor de políticos com visões enviesadas ou preconceituosas, a análise da avaliação dos resultados vai sendo manuseada sem o mínimo interesse na qualidade e no rigor dessa observação. Ora se avaliam os anos finais de ciclo, ora se avaliam os anos intermédios; ora os exames contam para o sucesso escolar, ora são meramente formativos, sem peso nenhum na transição de ano. Combate-se o insucesso com a burocracia criada para o dificultar, sem olhar à qualidade das aprendizagens, reduz-se o conhecimento a segmentos ditos “essenciais”, truncados de articulação, de uma sistematização compreensível. Tudo numa perspectiva de criação de um sucesso estatístico que, depois, choca com as avaliações internacionais, como a dos testes PISA (ou TIMSS, PIRLS).
A política. Tema de que fujo como a cruz foge do diabo. E com razão. Em menos de dois meses, teremos eleições legislativas, depois de um ciclo de maioria absoluta ter sido interrompido devido a uma acumulação de trapalhadas e casos pouco edificantes para a classe política, para nós cidadãos e para a imagem internacional do país. O que redundou numa investigação judicial ainda longe do seu fim, mas desprestigiante, incómoda e incompatível com a habitual táctica da avestruz, da cabeça enfiada na areia. Em Março, então, iremos poder escolher entre: mais do mesmo; o quase diferente do mesmo; os extremismos “português suave” que só não serão perigosos, porque não são para serem levados a sério, já que se pulverizariam se alguma vez chegassem ao deslumbramento do poder. Que felizardos somos!
Lamento o tom pouco optimista deste texto, mas quando «nada é o que diz ser», que sirva como aviso para que todos possamos estar mais alerta. Para concluir, apenas me resta ter esperança no futuro e acrescentar um simples e sincero: «Feliz Ano Novo!».