
José Carlos Carvalheiras
Sociólogo, autor de várias obras sobre identidade cultural e memória coletiva, cronista, ensaísta, guionista de teatro e cinemaPor altura do verão, o tema da vaca de fogo vem à baila em locais onde em tempos ela bailou em rodopios e correrias efusivas espalhando adrenalina, espetáculo e algumas queimaduras. A vaca de fogo era um deleite para os foliões das Terras de Sousa. Dessa tradição ficou a saudade nos apaniguados dessa prática. De ano para ano o efeito saudosista ganha força e neste verão viram-se nas “Sebastianas”, de Freamunde, nas “Grandiosas”, de Lousada e nas “Vitórias”, da Lixa, algumas recriações simbólicas, que fizeram lembrar aquela tradição.
Corria lenta e tórrida a madrugada de 30 de Julho de 2011. Era já domingo da Festa Grande de Lousada e o relógio marcava 03:30 horas. “Oh, que selvagens, que perigoso, mandem parar aquilo”, dizia uma visitante de Lisboa. Estava no Café Paládio, com algumas pessoas barricadas junto ao vidro da montra, assistindo ao espetáculo que sucedia no exterior. “Uma barbaridade”, insistia a dita senhora, chegada poucas horas antes à vila lousadense.
Na rua, um homem transportava aos ombros um artefacto com forma de bovino de onde se soltava lume em jatos ou repuxos e bichas de rabear, que saltitavam para todas as direções. Era a famosa Vaca de Fogo. A cena fazia as delícia dos destemidos, que perseguiam a dita cuja. À distância muitos mais assistiam àquele baile de onde dançavam as tradicionais bichas, que aqui e ali fazia esconder e fugir os espetadores.

Nesse ano de 2011, um jovem terá sido atingido num olho por um artefacto pirotécnico. Dizem uns que era proveniente da Vaca de Fogo. Outros juram a pés juntos que foi uma bicha lançada por “atiradores furtivos”. Essa espécie que proliferou nas festas, durante muitos anos, consistia em homens que adquiriam no “mercado negro” bichas de rabear que lançavam com o intuito de provocar pânico e adrenalina. Na ausência de males maiores para quem era atingido, a cena podia ser hilariante. Antes, durante e, sobretudo, depois de corrida a Vaca de Fogo, o lançamento de bichas era uma “praga” que dominava a madrugada da festa.
Na sequência do processo judicial desencadeado nos anos seguintes, por causa da ocorrência de 2011 em Lousada, foi interposta uma providência cautelar que proibiu o espetáculo da Vaca de Fogo. No ano anterior, em Ribeira de Pena, também um homem tinha sido atingido num olho por um petardo do género durante a largada de uma Vaca de Fogo, e a Câmara Municipal foi condenada a pagar 360 mil euros de multa. O caso de Lousada (ainda) segue trâmites judiciais e não se vislumbra para breve a sua conclusão.
A Vaca de Fogo era ilegal e (quase) todos sabiam, desde festeiros a pirotécnicos e autoridades. Como qualquer outro engenho pirotécnico, carecia de legalização. A sua autorização nunca seria possível aos olhos da legalidade. O anexo 1 do artigo 9.º do Decreto Lei 34/2010, de 15 de Abril, diz que “os fogos-de-artifício não podem movimentar-se de forma errática e imprevisível”.
Era uma referência etnográfica da localidade, não só em Lousada mas também em Freamunde, Boelhe, Bitarães, Lixa, Vizela e outras localidades na região do Sousa e arredores. Foi uma tradição etnográfica enraizada nos costumes festivos coletivos e uma tradição simbólica que promovia a identidade coletiva.
A origem de tão curioso e peculiar ritual envolve-se em incerteza. O autor Javier Aréval refere que o fogo como elemento ritual, quer na sua versão cristianizada (velas, por exemplo), quer na sua versão mais pagã (fogueiras), cumprem dois propósitos: purificador (destrói o que é velho) e fecundador, pois permite um renascimento das cinzas resultantes da queima. A celebração destes princípios incentivou a práticas festivas como a Vaca de Fogo em vários pontos da Península Ibérica.
Uma outra origem pode estar ligada ao Toro de Fuego, muito popular na região de Valência. Segundo Alberto de Jesús, isso remonta às touradas noturnas, realizadas em Creta por gregos e romanos, e também nas conquistas e batalhas mediterrânicas feitas por celtas, romanos e cartagineses. Nestas, o touro e o boi cumpriam uma importante função estratégica e militar. Aos chifres dos animais os guerreiros prendiam lenha e panos embebidos em gordura, aos quais ateavam fogo. Depois, os animais eram conduzidos em manadas até ao acampamento inimigo onde, com o alastrar do fogo, ficavam enfurecidos e causavam o caos propício ao ataque.
Será possível o regresso da Vaca de Fogo? Estão a decorrer “movimentações” de “forças vivas” da região com o intuito de legalizar a tradição perdida, que foi banida em 2016, na sequência de um incidente em Lousada, em 2011. Parece que a mudança é a via para a legalização: ou muda a Lei ou retira-se bravura à vaca. Quer se queira, quer não, aquela senhora da capital tinha o seu quê de razão…