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Manuel Pinto Ferreira de Sousa aos 100 anos: memória, amizade e o valor esquecido

por Rafael Ferreira
Rafael Telmo Ferreira Opinião Vale do Sousa TV
Rafael Ferreira
Professor na área das artes e tecnologias, licenciado em Educação, Comunicação Audiovisual e pós-graduado em Tecnologia Educativa. Apaixonado por cinema, imagem, animação e artes.

Em 2025 celebra-se o centenário do nascimento de Manuel Pinto Ferreira de Sousa (17 de dezembro de 1925 ‒ 3 de agosto de 2007), figura multifacetada que habita não apenas o passado de Penafiel, mas também a memória cultural de Portugal. Professor, notário, escritor e intelectual, Ferreira de Sousa deixou uma obra literária e um legado humano que exigem reavivar-se, sobretudo pela sua amizade com Ferreira de Castro — mestre do neorrealismo português — e pela forma como essa amizade foi instrumento de partilha cultural.

Ferreira de Sousa nasceu em Guilhufe, Penafiel, licenciado em Filosofia (Faculdade Pontifícia de Filosofia de Braga, 1950) e em Direito (Universidade de Coimbra, 1961), com cursos adicionais, inclusive aperfeiçoamento em francês em França.  A sua carreira docente decorreu em diversas escolas no Porto, Lisboa, Gondomar e Penafiel.  Além disso, desempenhou funções públicas como conservador do registo civil e notário, tendo sido presidente da Câmara de Constância nos anos sessenta. 


Discurso proferido em 10 de Abril de 1971 em Santa Margarida da Coutada em Constância, por inauguração do fornecimento de energia eléctrica àquela freguesia, a convite da Câmara Municipal de Constância e do Dr. Celestino Rego Alves.

A obra literária de Ferreira de Sousa inclui textos em prosa e poesia, periodicamente publicados em jornais e revistas regionais e nacionais.  Mas é com “Encontros e Cartas de Ferreira de Castro” que se revela uma faceta profundamente pessoal. Ferreira de Castro, autor de “A Selva” (1930), considerado precursor do neorrealismo em Portugal e autor com forte intervenção social e literária, mantinha uma relação epistolar com Ferreira de Sousa que ultrapassava a mera correspondência intelectual, evidenciando cumplicidade, admiração e amizade. 

A doação de exemplares de Ferreira de Castro para a Biblioteca Municipal de Penafiel, através da mediação de Ferreira de Sousa, constitui uma expressão de generosidade cultural: não se trata apenas de bens materiais, mas de património literário ao alcance da comunidade, reforçando a identidade regional. O guia “Mapa dos Livros. Guia Literário de Penafiel” (2020) incluiu Ferreira de Castro e autores penafidelenses, numa proposta cultural que valoriza percepções locais da literatura nacional. 

O escritor Ferreira de Castro acompanhado de Manuel Pinto Ferreira de Sousa, em frente ao Café Turismo – Termas de S. Vicente em Julho de 1970

É relevante acrescentar que Ferreira de Castro não apenas simboliza o Neorrealismo português, como inspirou gerações; o seu percurso desde a infância, passando pela emigração para o Brasil aos 12 anos, o trabalho no seringal amazónico e o retorno para Portugal, são episódios bem documentados.  Essa biografia recorda que “A Selva” não foi apenas um romance, mas uma obra que emergiu de vivências mais duras — e que Ferreira de Sousa, através da amizade, reconheceu e realçou esse valor humano e literário.

Este centenário pode, assim, servir para mais do que homenagear: é uma ocasião para repensar como valorizamos quem viveu fora do centro cultural mediático, mas deixou marca. Ferreira de Sousa, com os seus papéis múltiplos, mostra-nos que a cultura local e as amizades literárias têm impacto duradouro. Num momento em que o digital parece sobrepor-se ao físico, lembrar-se de cartas trocadas, livros oferecidos, bibliotecas locais, pode reacender o gosto pela leitura e pela autenticidade.

Se há mensagem a extrair deste centenário, é que talento só floresce onde há solo fértil: não apenas nos grandes centros, mas onde há curiosidade, dedicação, leitura e partilha. Que Manuel Pinto Ferreira de Sousa seja mais visível, não só em Penafiel, mas em Portugal, como exemplo de quem fez da cultura, da educação e da amizade literária uma ponte para o tempo.

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